29 de setembro de 2006

Estaline, um pouco de história

Iosef Estaline nasceu em 1878, numa aldeia da Geórgia, nação então submetida ao domínio do império dos czares da Rússia. Filho de um sapateiro e de uma lavadeira, estudou num seminário da Igreja Ortodoxa. Mas, ao invés de se tornar padre, será dirigente de um partido marxista e clandestino opositor do despótico regime dos czares, o Partido Bolchevique. Por várias vezes foi preso e deportado para a inóspita região da Sibéria.

Com a revolução russa de 1917 o seu partido ascende ao poder. Isto num estado em guerra e praticamente em colapso político, económico, social e militar. Numa sociedade que ainda mal houvera dado os primeiros passos da Revolução Industrial, perdurando essencialmente agrária e medieval. E num país isolado e ameaçado pelos governos das grandes potências, desejosos de afogar a revolução.

Nestas condições, o que inicialmente apareceu como uma revolução libertadora, distribuindo as terras dos senhores feudais pelos camponeses e tirando o país da carnificina da 1ª Guerra Mundial, rapidamente degenerou numa guerra civil participada por intervenções armadas estrangeiras. O que inicialmente era um governo de coligação rapidamente degenerou numa ditadura de partido único. E a ditadura rapidamente degenerou esse partido.

É então que Estaline vai entrar para a história. Ascendendo à liderança de um Estado, a antiga Rússia dos czares entretanto transformada em URSS - União das Repúblicas Socialistas Soviéticas. E à liderança de uma ideologia, o comunismo.

Como estadista, Estaline conduziu uma URSS subdesenvolvida ao lugar de 2ª potência industrial do mundo, ultrapassada apenas pelos Estados Unidos da América, e ao desempenho de um papel determinante na derrota do nazismo na 2ª Guerra Mundial

Porém, pegando nas palavras do diplomata soviético Andrei Gromyko, “Estaline foi igualmente um homem rude; para alcançar os seus objectivos desvalorizou a vida humana e edificou um sistema estatal, monstruoso e arbitrário, responsável pela morte de uma multidão de soviéticos inocentes. (...) Comparados à massa dos crimes de Estaline, os piores excessos dos antigos autocratas russos e seus esbirros parecem insignificantes. Como uma serpente, enganou e agrediu sem piedade os heróis da velha guarda bolchevique bem como simples cidadãos, trabalhadores, camponeses, intelectuais, comunistas e sem partido. (...) Tudo isto não deve, todavia, lançar na sombra os imensos sucessos alcançados pelo nosso povo, tanto na paz como na guerra, apesar dos crimes monstruosos de Estaline. Para ser-se justo, há que ter em consideração as páginas sombrias da nossa história, mas também, ao mesmo tempo, as páginas heróicas”. (1)

De facto, como afirma o historiador norte-americano Stephen Cohen, “a época de Estaline” foi uma “época de grandes realizações e crimes monstruosos que são difíceis de conciliar. Milhões de pessoas foram vítimas da brutal colectivização forçada e do terror em massa - assassinadas ou detidas” em “campos de trabalhos forçados - mas outros milhões trabalharam heroicamente e ergueram-se nas campanhas para forjar uma nação industrial poderosa e derrotar os invasores” nazis comandados por Adolf Hitler. (2)

Creio que ninguém de bom senso poderá desculpar os crimes de Estaline com os sucessos que a URSS alcançou sob o seu governo. Mas há quem, embora condenando Estaline, considere que a forma como este governou era em traços gerais a única forma de, em tão pouco tempo, alcançar tais sucessos. Discordo. Penso que o historiador e antigo dissidente soviético Rói Medvedev tem toda a razão quando aponta que as grandes transformações que modernizaram a URSS na altura, teriam sido muito mais rápidas se tivessem continuado a contar com o contributo de centenas de milhares de pessoas que foram assassinadas, ou não é o capital humano o mais precioso para o desenvolvimento de um país? Como escreveu Medvedev, “os prisioneiros dos campos de concentração estalinianos levaram a cabo um grande número de realizações: construíram a maior parte dos canais e das centrais hidroeléctricas, de numerosas vias férreas, de fábricas, de oleodutos e mesmo de grandes edifícios em Moscovo. Mas a indústria teria conhecido um crescimento mais rápido se estes milhões de pessoas inocentes tivessem trabalhado livremente. O recurso à força contra o campesinato contribuiu igualmente para retardar o ritmo de crescimento da agricultura., tendo sobre a economia soviética efeitos desastrosos, que se fizeram sentir” até ao fim do regime. (3)

Do ponto de vista ideológico. Aqui há quem aponte, como recentemente fez o director do jornal Público, o governo de Estaline como consequência inevitável da Revolução de 1917 e como a essência do comunismo ou socialismo.

Quanto à primeira tese, penso que constitui, nas palavras do já citado Stephen Cohen, um autêntico “desprezo por aspectos essenciais da história real - como confrontos entre tradições, alternativas, pontos de viragem e uma multiplicidade de contingências, causas e influências”. (4)

Quanto a considerar-se o estalinismo como a essência do comunismo/socialismo será já um perfeito absurdo. Afinal, como reconheceu o PSD no seu primeiro congresso, os “grandes ideais do socialismo” são a “liberdade, igualdade e solidariedade” e “não há socialismo sem democracia”. (5)

É certo porém que se trata de um absurdo de algum modo compreensível. Leiamos sobre isso um testemunho do antigo dissidente soviético L. Elkonine: “pouco a pouco, fatalmente, instalou-se no espírito das pessoas a ideia de que tudo o que constituía o fundamento político, ideológico e moral da sociedade soviética sob Estaline, era o socialismo: o culto do Estado e da autoridade, a irresponsabilidade dos homens no poder, a ausência de direitos da população, a hierarquia dos privilégios e a canonização da hipocrisia, as formas ‘militares’ da vida social e intelectual, a destruição do indivíduo e a liquidação do pensamento independente, o clima de terror e de suspeição, a atomização do povo, (...) a violência desenfreada e a crueldade legal: acreditou-se que era isto o socialismo. Mas é justamente assim que os ideólogos do capitalismo não cessaram de caricaturar” o socialismo desde que este surgiu como movimento político. “O sistema estaliniano fez passar estas calúnias por factos. E só pôde fazer esta conversão tornando-se parasita não somente das grandes realizações do nosso povo, que levantado de entusiasmo pela Revolução (...), tinha começado a construir o socialismo (...) A maior tragédia (...) de toda a história do socialismo, é que degradou-se e desacreditou-se o socialismo em nome do próprio socialismo, (...) e no primeiro país que tinha empreendido a revolução socialista e que era chamado a servir de exemplo para os outros países (...) É sem dúvida o maior crime de Estaline: ter sujado e traído a causa do socialismo (...) Prestou ao capitalismo um serviço incomensurável: nenhum dos inimigos do socialismo fez melhor”. (6)

Mas como foi possível uma revolução imbuída de ideais tão nobres degenerar de tal forma? Foi em grande medida o problema de como facilmente o poder corrompe e se afasta do povo, de como é fácil abusar dele, e da falta de mecanismos democráticos para o corrigir. E isto num contexto histórico determinado, bastante propício a este tipo de situações, que já aflorámos.

Os abusos de poder não são exclusivo de nenhuma ideologia, de nenhum sistema político, de nenhuma classe ou época. Têm ocorrido e continuam a ocorrer, ao longo dos séculos até aos dias de hoje, em nome do comunismo, do capitalismo, do liberalismo, do cristianismo, do islamismo...

O melhor remédio para os abusos de poder é a democracia. E a melhor forma de melhorar a prevenção de abusos de poder é melhorar a democracia.

A perversão do comunismo personificada em Estaline acaba por ser um excelente exemplo, entre tantos outros, de como o comunismo, na sua verdadeira essência, é um ideal cada vez mais válido. Assenta numa concepção alargada dos direitos humanos fundamentais, da qual a liberdade é um elemento básico e central, apontando não só para a valorização e aprofundamento da democracia política, tanto na vertente representativa como na participativa, mas também da democracia económica, social e cultural: o poder económico tem que estar subordinado ao poder político pertença do povo (à cidadania); tem que haver justiça social e igualdade de oportunidades, tem de ser para todos o direito ao emprego, à habitação, à educação, à saúde, à informação, e muitos mais.

Estaline morreu há 50 anos. Mas perdura como uma grande e trágica lição da História.


Notas:

(1) - Gromyko, Andrei, Memoires, Éditions Pierre Belfond, Paris, 1989, págs. 98/9

(2) - Cohen, Stephen, “Ligachev and the tragedy of Soviet Conservatism” - introduction to Yegor Ligachev’s Inside Gorbachev’s Kremlin, Westview Press, Boulder (USA), 1996, pág. xiv

(3) - Medvedev, Rói, Le Stalinisme, Éditions du Seuil, Paris, 1972, pág. 612

(4) - Cohen, Stephen, Rethinking the Soviet Experience, Oxford University Press, New York, 1986, pág. 7

(5) - Programa do Partido Popular Democrático, 1974, pág. 13

(6) - Elkonine, L. - citado por Rói Medvedev, op. cit., págs. 603/4


Retirado de “Nova em Folha”, jornal da Associação de Estudantes da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa.

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